terça-feira, 11 de maio de 2010

Portugal




Portugal

Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me

sentir como se tivesse oitocentos

Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater

os infiéis ao norte de África

só porque não podia combater a doença que lhe atacava

os órgãos genitais

e nunca mais voltasse

Quase chego a pensar que é tudo mentira

Que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney

E o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente



Portugal

Não imaginas o tesão que sinto

Quando ouço o hino nacional

(que os meus egrégios avós me perdoem)

Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo

Anda na consulta externa do Júlio de Matos

Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar

àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera

um futuro de rosas



Portugal

Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos

a ver se contraía a febre do império

mas a única coisa que consegui apanhar

foi um resfriado

Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar

uma pétala que fosse

das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador



Portugal

Se tivesse dinheiro comprava um império e dava-to

Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir


Portugal

Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém

Sabes

Estou loucamente apaixonado por ti

Pergunto a mim mesmo

Como me pude apaixonar por um velho decrépito

e idiota como tu

mas que tem o coração doce, ainda mais doce

que os pasteis de Tentúgal

e o corpo cheio de pontos negros

para poder espremer à minha vontade


Portugal estás a ouvir-me?

Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete

Salazar estava no poder

nada de ressentimentos

O meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram

nada de ressentimentos

um dia bebi vinagre

nada de ressentimentos

Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas

a nado na piscina municipal de Braga

ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional

Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho

Que Camões lá deixou



Portugal

Sabes de que cor são os meus olhos?

São castanhos como os da minha mãe


Portugal

gostava de te beijar muito apaixonadamente

na boca



Jorge de Sousa Braga, O Poeta Nú, Ed Fenda, 1991


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